Parte 12

 

ANTÃO VISITA OS IRMÃOS AO LONGO DO NILO

54. Um vez os monges pediram-lhe que voltasse para eles e passasse algum tempo visitando-os e a seus estabelecimentos. Fez a viagem com os monges que vieram a seu encontro. Um camelo ia carregado com pão e água, já que em todo esse deserto não havia água, e a única potável estava na montanha de onde haviam saído e onde estava sua cela. Indo a caminho, acabou-se a água, e estavam todos em perigo quando o calor era mais intenso. Andaram buscando (52) e voltaram sem a encontrar. Estavam por demais fracos para poderem caminhar. Lançaram-se ao chão e deixaram partir o camelo, entregando-se ao desespero.

Vendo o perigo em que todos estavam, o ancião encheu-se de aflição. Suspirando profundamente, apartou-se um pouco deles. Ajoelhou-se, estendeu as mãos e orou. E de repente o Senhor fez brotar uma fonte no lugar onde estava orando, e todos puderam beber e refrescar-se. Encheram os odres e puseram-se a buscar o camelo até que o encontraram: sucedeu que o cordel se embaraçara numa pedra e ficara preso. Levaram-no a beber e carregando-o com os odres concluiram sua viagem sem mais prejuízos ou acidentes.

Ao chegar às celas exteriores, todos lhe deram cordiais boas-vindas, olhando-o como a um pai (53). Por seu lado, como trazendo-lhes provisões de sua montanha, ele os entretinha com suas narrações e lhes comunicava sua experiência prática. E de novo houve alegria nas montanhas e anelos de progresso, e de consolo que vem de uma fé comum (cf Rm 1,12). Também se alegrou ao contemplar o zelo dos monges, e ao ver sua irmã que havia envelhecido em sua vida de virgindade, sendo ela mesma guia espiritual de outras virgens.

OS IRMÃOS VISITAM A ANTÃO

55. Depois de alguns dias voltou à sua montanha. Desde então muitos foram visitá-lo, entre eles muitos cheios de aflição, que arriscavam a viagem até ele. Para todos os monges que chegavam até ele, tinha sempre o mesmo conselho: pôr sua confiança no Senhor e amá-lo, guardar-se a si mesmo dos maus pensamentos e dos prazeres da carne, e não ser seduzidos por um estômago cheio, como está escrito nos Provérbios (Pr 24,15). Deviam fugir da vanglória e orar continuamente; cantar salmos antes e depos do sono; guardar no coração os mandamentos impostos nas Escrituras e recordar os feitos dos santos, de modo que a alma, ao recordar os mandamentos, possa inflamar-se ante o exemplo de seu zelo. Aconselhava-os sobretudo recordar sempre a palavra do Apóstolo: "Que o sol não se ponha sobre vossa ira" (Ef 4,26), e a considerar estas palavras como ditas em relação a todos os mandamentos: o sol não se deve pôr não apenas sobre nossa ira, como sobre nenhum outro pecado.

É inteiramente necessário que o sol não nos condene por nenhum pecado de dia, nem a lua por nenhuma falta noturna (inclusive o mau pensamento). Para assegurar-nos disso, é bom ouvir e guardar o que diz o apóstolo: "Julguem-se e provem-se a si mesmos" (2 Cor 13,5). Por isso, cada um deve fazer diariamente um exame do que fez de dia e de noite; se pecou, deixe de pecar; se não pecou, não se orgulhe disso. Persevere antes na prática do bem e não deixe de estar em guarda. Não julgue o próximo nem se declare justo a si mesmo, como diz o santo apóstolo Paulo , "até que venha o Senhor e traga à luz o que está escondido" (1 Cor 4,5; Rm 2,16). Muitas vezes não temos consciência do que fazemos; nós não o sabemos, mas o Senhor conhece tudo. Por isso, deixando a Ele o julgamento, compadeçamo-nos mutuamente e "levemos as cargas uns dos outros" (Gl 6,2). Julguemo-nos a nós mesmos e, se nos vemos diminuídos, esforcemo-nos com toda a seriedade por reparar nossa deficiência. Que esta observação seja nossa salvaguarda contra o pecado: anotemos nossos atos e impulsos da alma como se tivéssemos de informar a outro: podem estar seguros de que de pura vergonha de que isto seja conhecido, deixaremos de pecar e de prosseguir com pensamentos pecaminosos. Quem gosta que o vejam pecando? Quem, depois de pecar, não preferiria mentir, esperando escapar assim de que o descubram? Assim como não quiséramos abandonar-nos ao prazer à vista de outros, assim também se tivéssemos de escrever nossos pensamentos para dizê-los a outro, muito nos guardaríamos de maus pensamentos, por vergonha que alguém os soubesse. Que essa informação escrita seja, pois, como os olhos de nossos irmãos ascetas, de modo que, ao nos envergonharmos de escrever como se nos estivessem vendo, jamais nos demos ao mal. Modelando-nos desta maneira, seremos capazes de "levar nossos corpos a obedecer-nos" (1 Cor 9,27), para agradar ao Senhor e calcar aos pés as maquinações do inimigo".

MILAGRES NO DESERTO

56. Estes eram os conselhos a seus visitantes. Com os que sofriam unia-se em simpatia e oração, e amiúde e em muitos e variados casos, o Senhor ouviu sua oração. Nunca, porém, se jactou quando atendido, nem se queixou não o sendo. Sempre deu graças ao Senhor, e animava os que sofriam a ter paciência e a se aperceberem de que a cura não era prerrogativa dele nem de ninguém, mas de Deus só, que a opera quando quer e a favor de quem Ele quer. Os que sofriam ficavam satisfeitos, recebendo as palavras do ancião como cura, pois aprendiam a ter paciência e a suportar o sofrimento. E os que eram curados aprendiam a dar graças, não a Antão, mas a Deus só.

57. Havia, por exemplo, um homem chamado Frontão, oriúndo de Palatium (54). Tinha uma enfermidade horrível: mordia continuamente a língua e sua vista ia se encurtando. Chegou à montanha e pediu a Antão que rogasse por ele. Orou e disse logo a Frontão: "Vai-te, vais ser curado". Ele porém, insistiu e ficou durante dias, enquanto Antão prosseguia dizendo-lhe: "Não ficarás curado enquanto ficares aqui. Vai-te, e quando chegares ao Egito, verás em ti o milagre". O homem consentiu afinal e foi-se; e ao chegar à vista do Egito, sua enfermidade desapareceu. Sarou segundo as instruções que Antão havia recebido do Senhor enquanto orava.

58. Uma menina de Busiris em Trípoli padecia de uma enfermidade terrível e repugnante: uma supuração nos olhos, nariz e ouvidos transformava-se em vermes quando caía no chão. Além disso tinha o corpo paralisado e seus olhos eram defeituosos. Seus pais ouviram falar de Antão por alguns monges que iam vê-lo, e tendo fé no Senhor que curou a hemorroísa (Mt 9,20), pediram-lhes licença para irem também com sua filha, e eles consentiram. Os pais e a menina ficaram ao pé da montanha com Pafnúcio (55), o confessor e monge. Os demais subiram, e quando se dispunham a falar-lhe da menina, ele adiantou-se e lhes falou tudo sobre os sofrimentos dela, e de como havia feito com eles a viagem. Então, quando lhe perguntaram se essa gente podia subir, não lhes permitiu e disse: "Podem ir e, se não morreu, vão encontrá-la sã. Não é certamente nenhum mérito meu que ela tenha querido vir a um infeliz como eu; não, em verdade, sua cura é obra do Salvador que mostra sua misericórdia em todo lugar aos que o invocam. Neste caso o Senhou ouviu sua oração, e Seu amor pelos homens me revelou que curará a enfermidade da menina onde ela está". Em todo caso o milagre se realizou: quando desceram, encontraram os pais felizes e a memina em perfeita saúde.

59. Sucedeu também que quando dois dos irmãos estavam em viagem para vê-lo, acabou-se-lhes a água; um morreu e o outro estava a ponto de morrer. Já não tinha forças para andar, mas jazia no chão esperando também a morte. Sentado na montanha, Antão chamou dois monges que casualmente estavam ali e os compeliu a se apresarem: "Tomem um jarro d'água e corram descendo pelo caminho do Egito; vinham dois, um acaba de morrer e o outro também morrerá se vocês não se apressarem. Foi-me revelado isto agora na oração". Foram-se os monges, acharam um morto e o enterraram. Ao outro fizeram-no reviver com água e o levaram ao ancião. A distância era de um dia de viagem. Agora, se alguém pergunta porque não falou antes de morrer o outro, sua pergunta é injustificada. O decreto de morte não passou por Antão, mas por Deus que a determinou para um, enquanto revelava a condição do outro. Quanto a Antão, o admirável é que, enquanto estava na montanha com seu coração tranquilo, mostrou-lhe o Senhor coisas distantes.

60. Noutra ocasião em que estava sentado na montanha, olhando para cima viu no ar alguém levado para o alto entre grande regozijo de outros que lhe saíam ao encontro. Admirando-se de tão grande multidão e pensando quão felizes eram, orou para saber quem podia ser este. De repente uma voz se dirigiu a ele dizendo-lhe que era a alma do monge Amón de Nítria (56), que levou vida ascética até idade avançada. Pois bem, a distância de Nítria à montanha onde Antão estava era de treze dias de viagem. Os que estavam com Antão, vendo o ancião tão extasiado, perguntaram-lhe o motivo e ele lhes contou que Amón acabava de morrer.

Este era bem conhecido pois vinha aí amiúde e muitos milagres foram operados por seu intermédio. Segue um exemplo. Uma vez tinha que atravessar o chamado rio Lycus na estação das cheias; pediu a Teodoro que se adiantasse para que não se vissem nus um ao outro enquanto atravessavam o rio a nado. Então, quando Teodoro se foi, ele sentiu-se entretanto envergonhado por ter que se ver ele mesmo nu. Enquanto estava assim desconcertado e refletindo, foi de repente transportado à outra margem. Teodoro, também, homem piedoso, saiu da água, e ao ver que o outro chegara antes dele sem se haver molhado, perguntou-lhe como atravessara. Quando viu que não o queria contar, agarrou-se a seus pés, insistindo em que não o soltaria até que lhe dissesse. Notando a determinação de Teodoro, especialmente depois do que lhe disse, insistiu por sua vez para que não o dissesse a ninguém antes de sua morte, e assim lhe revelou ter sido levado e depositado na margem; que não havia caminhado sobre as águas, uma vez que isto só é possível ao Senhor e àqueles aos quais Ele o permite, como o fez no caso do grande apóstolo Pedro (Mt 14,19). Teodoro relatou isto depois da morte de Amón.

Os monges aos quais Antão falou sobre a morte de Amón anotaram o dia e quando, um mês depois, os irmãos voltaram de Nítria, perguntaram e souberam que Amón havia dormido no mesmo dia e hora em que Antão viu sua alma levada para o alto. E tanto eles como os outros ficaram estupefatos ante a pureza de alma de Antão, que podia saber imediatamente o que se passara treze dias antes, e que era capaz de ver a alma levada para o alto.

61. Noutra ocasião, o conde Arqueláo (57) o encontrou na Montanha Exterior e pediu-lhe somente que rezasse por Policrácia (58), a admirável virgem de Laodicéia, portadora de Cristo (59). Sofria muito do estômago e das costas devido à sua excessiva austeridade, o seu corpo estava reduzido a grande debilidade. Antão orou e o conde anotou o dia dessa oração. Ao voltar a Laodicéia encontrou curada a virgem. Pergutando quando se havia visto livre de sua debilidade, tirou o papel onde anotara a hora da oração. Quando lhe responderam, imediatamente mostrou a sua anotação no papel, e todos se maravilharam ao reconhecer que o Senhor a havia curado de sua doença no próprio momento em que Antão estava orando e invocando a bondade do Salvador em seu auxílio.

62. Quanto a seus visitantes, predizia frequentemente sua vinda ,dias e às vezes um mês antes, indicando o motivo da visita. Alguns vinham só para vê-lo, outros devido a enfermidades, e outros, atormentados pelos demônios. E ninguém considerava viagem demasiado molesta ou que fosse tempo perdido; cada um voltava sentindo que fora ajudado. Ainda que Antão tivesse esses poderes de palavra e visão, no entanto suplicava que ninguém o admirasse por essa razão, mas admirasse antes ao Senhor porque Ele nos ouve a nós, que somos apenas homens, a fim de que possamos conhecê-lo melhor.

63. Noutra ocasião havia descido de novo para visitar as celas exteriores. Quando convidado a subir a um barco e orar com os monges, só ele percebeu um mau cheiro horrível e sumamente penetrante. A tripulação disse que havia a bordo pescado e alimento salgado e que o cheiro vinha disso, mas ele insistiu que o odor era diferente. Enquanto estava falando, um jovem que tinha um demônio e subira a bordo pouco antes como clandestino, soltou de repente um guincho. Repreendido em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, foi-se o demônio, e o homem voltou à normalidade; todos então se aperceberam de que o mau cheiro vinha do demônio.

64. Outra vez um homem de posição foi a ele, possuído por um demônio. Neste caso o demônio era tão terrível que o possesso não estava consicente de que ia a Antão. Chegava mesmo a devorar seus próprios excrementos. O homem que o levou a Antão rogou-lhe que rezasse por ele. Compadecido pelo jovem, Antão orou e passou com ele toda a noite. Ao amanhecer, o jovem lançou-se de repente sobre Antão, empurrando-o. Seus companheiros indignaram-se diante disso, mas Antão acalmou-os, dizendo: "Não se aborreçam com o jovem, pois não é ele o responsável, e sim o demônio que nele está. Ao ser increpado e mandado a lugares desertos (Lc 11,24), ficou furioso e fez isto. Dêem graças ao Senhor, pois o atacar-me deste modo é um sinal da partida do demônio". E enquanto Antão dizia isto, o jovem voltou a seu estado normal; deu-se conta de onde estava, abraçou o ancião e deu graças a Deus.

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