Parte 5

ANTÃO BUSCA O DESERTO E HABITA EM PISPIR

11. No dia seguinte ele se foi, inspirado por um zelo maior ainda pelo serviço de Deus. Foi ao encontro do ancião já antes mencionado (3,5) e rogou-lhe que fosse viver com ele no deserto. O outro declinou o convite devido à sua idade e porque tal modo de viver não era costume. Então ele se foi sozinho para a montanha. Aí estava, entretanto, de novo o inimigo! Vendo sua seriedade e querendo frustrá-la, projetou a imagem ilusória de um grande disco de prata sobre o caminho. Antão, porém, penetrando o ardil daquele que odeia o bem, deteve-se e, mirando o disco, desmacarou nele o demônio, dizendo: "- Um disco no deserto? De onde vem isto? Esta não é uma estrada frequentada e não há sinais de que haja passado gente por este caminho. É de grande tamanho e não pode haver caído inadvertidamente. Em verdade, ainda que fora perdido, o dono teria voltado a procurá-lo, e seguramente o haveria encontrado, pois esta região é deserta. Isto é engano do demônio. Não vás frustrar minha resolução com estas coisas, demônio! Teu dinheiro pereça contigo!" (cf At 8,20). E ao dizer isto Antão, o disco desapareceu como fumo.

12. Logo, enquanto caminhava, viu de novo, não mais outra ilusão, mas ouro verdadeiro, espalhado ao longo do caminho. Pois bem, seja que o próprio inimigo lhe tivesse chamado a atenção, ou fosse um bom espírito que atraiu o lutador, ficou demonstrado ao demônio que ele não se preocupava nem sequer das riquezas autênticas; ele próprio não o indicou, e por isso não sabemos nada senão que era realmente ouro o que ali havia. Quanto a Antão, ficou surpreendido pela quantidade que havia, mas passou por ele como se fora fogo, e seguiu seu caminho sem olhar para trás. Ao contrário, pôs-se a correr tão rápido que em pouco tempo perdeu de vista o lugar e dele desapareceu.

Assim, firmando-se sempre mais em seu propósito, apressou-se em direção à montanha (25). Em lugar distante do rio encontrou um fortim deserto que com o correr do tempo achava-se infestado de répteis. Ali se estabeleceu para viver. Os répteis, como que expulsos por alguém, foram-se de repente. Bloqueou a entrada, e depois de enterrar pão para seis meses - assim o fazem os tebanos e muitas vezes os pães se mantêm frescos por todo um ano - e tendo água perto, desapareceu como num santuário. Fizou sozinho, não saindo nunca e não vendo ninguém passar. Por muito tempo perseverou nesta prática ascética; só duas vezes por ano recebia pão, que lhe deixavam cair pelo teto.

13. Seus amigos que vinham vê-lo passavam a miúdo dias e noites fora, pois não queria deixá-los entrar. Ouviam barulho dentro como de multidão frenética, fazendo ruídos, armando tumultos, gemendo lastimosamente e dando guinchos: "Sai de nosso domínio! Que vens fazer no deserto? Tu não aguentas nossa perseguição!" A princípio, os que estavam fora criam haver homens lutando com ele e que haviam entrado por escadas, mas quando espreitaram por um buraco e não viram ninguém, deram-se conta de que os demônios é que estavam na coisa, e cheios de medo, chamaram Antão que estava mais inquieto por eles do que preocupado com os demônios. Chegando à porta, aconselhou-os que se fossem e não tivessem medo. Disse-lhes: "Os demônios só conjuram fantasmas contra o medroso. Façam agora o sinal da cruz e voltem a suas casas sem temor, e deixem que eles se enlouqueçam a si mesmos".

Foram-se, então, fortalecdios com o sinal da cruz, enquanto ele ficava sem sofrer dos demônios mal algum, sem se cansar, nem se alterar na contenda, porque a ajuda que recebia do alto por meio de visões e a debilidade de seus inimigos, davam-lhe grande alívio em suas penas, e ânimo para um entusiasmo maior. Seus amigos vinham uma ou outra vez supondo encontrá-lo morto, mas o ouviam cantar: "Levanta-se Deus e seus inimigos se dispersam; fogem de sua presença os que o odeiam. Como a fumaça, eles se dissipam; como se derrete a cera ante o fogo, assim perecem os ímpios diante de Deus" (Sl 67,2). E ainda: "Todos os povos me rodeavam, em nome do Senhor eu os expulsei" (Sl 117,10).

ANTÃO ABANDONA A SOLIDÃO E SE CONVERTE EM PAI ESPIRITUAL

14. Assim passou quase vinte anos, só praticando a vida ascética, não saindo nunca e sendo raramente visto por outros. Depois disto, como havia muitos que ansiavam e aspiravam imitar sua santa vida (26), e alguns de seus amigos vieram e forçaram a porta, derrubando-a, Antão saiu como de um santuário, como um iniciado nos sagrados mistérios e cheio do Espírito de Deus (27). Foi a primeira vez que se mostrou fora do fortim aos que vieram a ele. Quando o viram, estavam estupefatos ao comprovar que seu corpo conservava a antiga aparência: não estava nem obeso pela falta de exercício nem macilento pelos jejuns e lutas com os demônios: era o mesmo homem que haviam conhecido antes de seu retiro.

O estado de sua alma era puro, pois não estava nem retraído pela aflição, nem dissipado pela alegria, nem dominado pela distração ou pelo desalento. Não se desconcertou ao ver a multidão nem se orgulhou quando viu tantos que o recebiam. mantinha-se completamente controlado, como homem guiado pela razão e com grande equilíbrio de caráter.

Por ele o Senhor curou muitos dos presentes que tinham enfermidades corporais, e a outros libertou de espíritos impuros. Concedeu também a Antão o encanto no falar; e assim confortou a muitos em suas penas e reconciliou a outros que brigavam. Exortou a todos a nada preferir neste mundo ao amor de Cristo. E quando em seu discurso exortou-os a pensar nos bens futuros e na bondade demonstrada a nós por Deus, "que não poupou seu próprio Filho mas o entregou por todos nós" (Rm 8,32), induziu muitos a abraçar a vida monástica. E assim apareceram celas monásticas na montanha, e o deserto se povoou de monges que abandonavam os seus e se inscreviam como cidadãos do céu (cf Hb 3,20; 12,23).

15. Uma vez teve necessidade de atravessar o canal de Arsino e - por ocasião de uma visita aos irmãos -, o canal estava cheio de crocodilos. Orou simplesmente, meteu-se com todos os seus companheiros, e passou ao outro lado sem ser tocado. De volta à cela, aplicou-se com todo o zelo a seus santos e vigorosos exercícios. Por meio de constantes conferências inflamava o ardor dos que já eram monges e incitava muitos outros ao amor à vida ascética; e logo, na medida em que sua mensagem arrastava homens após ele, o número de celas monásticas multiplicava-se, e era para todos como pai e guia.

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